quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O Conceito Grego de arte: a Mimesis, a Techné, e a Poiésis




Nossa história começa em Sófron, nascido em Siracusa no século IV antes de Cristo. Sob o Palco dedicava-se à arte do mimo. Seu corpo tinha a propriedade de imitar o movimento natural de outros seres com perfeição. A essa arte deu-se o nome de Mímica. [1]                                   
Aristóteles

Para compreender o conceito mimético, é necessário voltar à origem do termo. Após a leitura da citação acima, retirada da Arte Poética de Aristóteles, podemos compreender o motivo da palavra mimese, derivado de mímica, portar o sentido da imitação.[2] A relação entre o real e a cópia fundamenta sua relação com as artes. No que diz respeito ao seu uso, o filólogo Göran Sörbom, em seu livro mimesis and art,[3] revela que autores muito anteriores à época de Platão já utilizavam mimesthai,[4] equivalente a mimesis.
A primeira ocorrência desta expressão encontramos em Píndaro e, posteriormente, nos trágicos e em Heródoto. O uso desse vocábulo por esses autores designa uma atividade de reprodução, de representação, artística e ritual, aplicada às estátuas, aos figurinos representando os mortos.[5]
O teatro, a música, a narrativa e as artes em geral são associados ao conceito de mimesis. A citação da origem da mimesis na Arte Poética é relacionada ao ator, à interpretação, à mímica. A arte mimética reproduz os gestos, as falas, as ações, ela            "incide sobre os elementos que ajudam a compor os personagens, os sons da natureza ou os elementos colocados em cena pelo ator, e ainda, as paisagens imaginárias e os ofícios representados na obra do pintor." [6]
A mimesis está de tal forma relacionada com a arte que os dois campos se confundem assim como seus limites. Da encenação ao figurino, da música à tela,  da dança ao texto, do corpo à fala, a mimesis fundamenta a relação da arte com o real e o público.
"Em Platão a mimese atravessa todo o campo da criação artística."[7] O conceito mais evidente da aplicação prática da mimesis em relação à arte é o valor que a representação  mantém com a realidade. Quanto maior a verossimilhança do objeto representado com o real, maior é o seu valor artístico.
Plínio e Cícero relatam a história do pintor Zeuxis, que foi convidado a ornamentar o Templo de Juno. O artista, desejoso de uma imagem que englobasse o reflexo perfeito da beleza feminina, solicitou que as jovens mais belas da cidade se submetessem ao seu julgamento. Como não encontrou alguma que fosse perfeita, cinco das mais belas posaram para o artista, que compôs sua figura com as partes do corpo mais perfeitas de cada uma. Zeuxis, obcecado pela ilusão, pintou com acuidade uvas que os passarinhos vinham bicar. Entretanto, sentiu-se humilhado por Parrasius, seu rival, quando desejou afastar uma cortina pintada em tromp l’oeil pelo mesmo.[8]

Françoise Dastur, em seu texto A Arte no Pensamento, ressalta que a definição de mimesis também coincide com o conceito platônico de Poiésis[9] e que costuma ser traduzido por imitação. Analisando o vocábulo Poiésis Platão mostra duas diferentes aplicações. "Na primeira, poiésis expressa o sentido geral do verbo poiéo, que significa produção, fabricação, criação. Na segunda, poiésis assume uma significação mais específica e traduz-se por poesia."[10]
Poiesis é um substantivo que se forma do verbo grego poiein. Este assinala no grego a ação de fazer diversificada, mas sobretudo a questão da essência do agir, daí estar ligada à poiésis, no sentido que hoje consideramos criação.[11]

 A criação e a poesia têm o significado equivalente por compartilhar a mesma origem. "É a arte da palavra que possui maior relevância sobre as demais na Grécia, pois é esta arte e nenhuma outra que leva o nome de criação".[12] Apesar de haver confusão e até a interpretação desses dois termos (Poiésis e Mimesis) como sinônimos, pode-se afirmar que eles possuem mais um sentido particular de relação do que de equivalência. O mesmo acontece com a Techné, que, devido a um erro, passou a ser traduzido como Arte. Manuel Antônio de Castro  ressalta que, na leitura do tratado de Aristóteles, se fez uma enorme confusão porque o termo substantivo era techné, que dizia respeito a todo e qualquer conhecimento e que indicava um "conhecimento" especial; o adjetivo poiétiké ficou esquecido. Passou-se a falar em Poética e se entendeu, na verdade, Techné, ou seja, conhecimentos técnicos.
Do verbo poiein se formou o adjetivo poietikos. (...) O feminino se substantivou e tornou-se he poitiké, ligada a outro substantivo grego: techné. Este substantivo significa fundamentalmente conhecimento.[13]

Mas qual a especificidade do termo techné em relação à poiésis? Techné é equivalente ao que entendemos por técnica, tecnologia. Fernando Santoro ilustra bem esse fato no início do artigo Arte no pensamento de Aristóteles: 
O conceito grego de téchne, que costuma traduzir por "arte", não fala da realização dos artistas, não tem o compromisso estético nem o valor da genialidade que lhes atribuímos hoje. A Techné é uma atividade humana fundada num saber. Aquele que tem uma arte detém um saber que o orienta em sua produção.[14]

Seguindo a linha de pensamento de Manuel Antônio Castro, no artigo A Poética da poiésis como questão, uma relação entre poiésis e techné se clarifica. De acordo com suas definições, a poiésis se aproxima de uma "essência de agir", de uma "força criadora" que utiliza um conhecimento técnico, uma técnica (techné), para realizar a vontade criadora.
Qualquer técnica só é técnica enquanto pressupõe um determinado conhecimento. Mas a essência do agir também pressupõe um determinado “conhecimento”. Não um conhecimento técnico, ou melhor, é aquele “conhecimento” técnico que é fundado e impulsionado pela essência do agir.[15]

A técnica era passada de geração a geração, aperfeiçoada, evoluindo em paralelo ao  conhecimento humano e às descobertas científicas. É pela habilidade, pela técnica, que toda a arte pode ser ensinada e aprendida, comprovando seu caráter educacional.
Quando Protágoras determina sua arte como "arte política" (politiké téchne), surge a questão de saber se a política pode ou não ser ensinada, que, em última instância, se equivale a saber se ela de fato é uma arte, já que está no conceito de arte a possibilidade de ser ensinada e aprendida.[16]

Do relacionamento destes elementos (mimesis, poiésis e techné), podemos construir uma perspectiva da arte na Grécia e entender o valor e a função da poesia. A identidade do grego nasceu da unificação do homem com a arte, fecundada pela Poesia. O fenômeno envolvendo a mimeses é tão forte e complexo no estudo das artes que a sua evolução permanece associada ao conhecimento até os dias atuais. Maria Luiza Falabella  escreve sobre a mimesis no livro História da Arte e Estética, da Mimesis à Abstração:
Constitui sempre um desafio às reflexões sobre a natureza da arte, seu papel, suas relações com o mundo, e esteve no centro da discussão das artes desde a Antiguidade Greco-Romana até os nossos dias. Sua importância como conceito refletiu-se tanto no discurso filosófico como no fazer artístico e na nossa própria maneira de ajuizar a obra de arte.[17]

        Enquanto, em Platão, o conceito mimético será definido por pensamentos políticos, reduzindo a importância da poesia na sociedade em detrimento da recém-surgida filosofia, seu discípulo Aristóteles sistematizará o campo de estudo mimético, ampliando sua utilização e suas possibilidades, fundando a Poética.


[1]ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, Editora Tecnoprint S.A., 1970.
[2]O conceito de imitação, a mimesis, foi o primeiro conceito de arte criado pelos gregos e que, por longos séculos, se consolidou como a principal referência artística. RAPOSO, Maria Tereza Resende. O Conceito de Imitação na pintura Renascentista e impressionista. In: Revista Eletrônica print by FUNREI. Disponível em:                               <http://www.funrei.br/revistas/filosofia>. Acesso em: 27 mar. 2008.
[3]SÖRBOM, Göran. Mimesis and Art. Studies in the Origin and Early Development of an Aesthetic Vocabulary. Scandinavian University Books, 1966. Disponível em: <http://www.blackwellpublishing.com/ content/ BPL_Images/Content_store/Sample_chapter/9780631207627/001.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2008.
[4]A tese de Killers é que a palavra grega mimesthai vem de mimos, o que significa ator, ou participante em um evento como protagonista, de onde deriva o sentido do ator dramático. KUI, Wong. Nietzsche, Plato and Aristotle on Mimesis. Disponível em: <http://dogma.free.fr/txt/KwokKuiNietzschePlatoAristotle.htm>. University of Hong Kong.  Acesso em: 01 fev. 2009.
[5]SOUZA, Jovelina Maria Ramos, op. cit.,  p. 51.
[6]Ibid., p. 52.
[7]Ibid., p. 51.
[8]ROSEMBER, Liana Ruth Bergstein. Artista e modelo: uma visualidade poética. Disponível em: <br.geocities.com/anpap_2004/ textos/chtca/LianaRosembe.pdf.>  p. 3. Acesso em: 2 abr. 2008. 
[9]Poese [Do gr. Poíesis, eos.] El. Comp. = ´formação´, ´criação´.
[10]SOUZA, Jovelina Maria Ramos, op. cit.,  p. 54.
[11]CASTRO, Manuel Antônio. A Poética da poiésis como questão. Disponível em: <http://travessiapoetica.blogspot.com/ 2006_09_01_archive.html>. Acesso em: 15 abr. 2008.
[12]DASTUR, Françoise. Arte no Pensamento. p. 16. Disponível em: <www.artenopensamento.org.br/pdf/ arte_no_pensamento.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2008.
[13]CASTRO, Manuel Antônio, op. cit., p. 4.
[14]MOREIRA, Fernando José de Santoro. Arte no Pensamento de Aristóteles. Disponível em:
< www.artenopensamento.org.br/pdf/arte_no_pensamento_de_aristoteles.pdf >. Acesso em: 19 mar. 2007.
[15]CASTRO, Manuel Antônio, op. cit., p. 4.
[16]RIBEIRO, Luís Felipe Bellintani. op. cit. p. 105.
[17]FALABELLA, Maria Luiza. História da Arte e Estética, da Mimesis à Abstração. Rio de Janeiro: Editora Elo, 1987, p. 9.

6 comentários:

  1. Agradeço - vim procurando a origem da palavra poesia!!! isto é importante, quando tiver mais tempo lerei mais

    Obrigado mais uma vez

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  2. Seu texto foi usado como tema de trabalho na minha faculdade. (:

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  3. Obrigada pelo texto! Deu pra compreender bem os conceitos com as aplicações ligadas as referências. Tinha muita dificuldade de entender pois minha professora usa uma linguagem metafórica pra explicar literatura.

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  4. Eu não tenho nenhum conhecimento de ensino superior, é tudo muito novo, estou encantada com tanto saber,com poucos textos a arte me surpreendeu.

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  5. Ótimo texto q traz importantes reflexões. É interessante relacionar também com as contribuições do crítico alemão Wilhelm Worringer em Abstração e Empatia (1908) que fala desse mímese como idealização platônica da realidade contra a expressão da realidade mais profunda e primal do espiritual e até do imaterial ao qual ele nomeia como abstração.

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